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terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

CUITÁ, OS SERTÕES E OUTROS BRASIS

 

Foto: Reprodução/Robson Rodrigues

Enquanto a população mundial atingia seu primeiro bilhão por volta de 1804, o sertão da Bahia era desbravado por vaqueiros resistentes, cuja coragem contrastava com a aridez do bioma da caatinga. No final do século XVIII, a Capitania da Bahia destacava-se como a mais próspera do Brasil Colonial, sustentada por uma economia diversificada: açúcar, tabaco, couro e algodão, além de madeiras de lei como o pau-brasil. Enquanto Salvador fervilhava como polo comercial e concentração populacional, o interior avançava na expansão da mineração de ouro que era a maior fonte de renda da capitania e a criação extrativista de gado, estratégica para o povoamento e territorialização. Novas vilas como Monte Santo, elevadas sob a lógica dos seus coronéis, se erguiam nos rincões mais longínquos daquelas terras. Por falar em minérios preciosos, foi naquela época que surgiram rumores sobre a descoberta de uma gigantesca pepita de prata, ou supostamente ouro nas remotas terras do sertão baiano. Se a memória não me trai, a preciosidade foi encontrada às margens do Riacho Bendegó, próximo à vila de Monte Santo, então um dos confins do interior da Bahia. O protagonista da história era um jovem vaqueiro, conhecido como Botelho, que, em 1784, teria topado com o tesouro reluzente enquanto procurava por sua bezerrinha desaparecida. Conta-se que, ao perscrutar a vegetação árida do sertão, seus olhos se depararam com uma massa metálica de aspecto incomum, soterrada parcialmente na terra de massapê, do lado esquerdo, no sentido corrente do riacho. O achado, mais tarde identificado como um meteorito, e não prata, como se cogitou à época, composto de ferro e níquel, com cerca de 5,36 toneladas, o maior já encontrado no Brasil e um dos maiores e mais significativos do mundo. Para o povo, tornou-se lendário, desencadeando uma verdadeira corrida por riquezas na região.

A tentativa de extrair o meteorito tornou-se uma alegoria do abandono do sertão. Coronéis locais, como os representantes das famílias Garcia d’Ávila e Dias Coelho, fracassaram em transportá-la devido ao peso e à logística precária. E mesmo ateando dias de fogo sobre o artefato, não se conseguia dividi-lo para facilitar o transporte. O jeito foi deixa-lo em sua cova e voltar para as suas terras menos ricos do que saíram. A superstição popular alimentou narrativas de que a pedra era “encantada”, recusando-se a deixar seu lar. Apenas em 1887, sob o Império agonizante de Dom Pedro II, uma expedição financiada pelo Barão de Guahy, José Carlos de Carvalho, conseguiu arrastá-la por centenas de dias em carros de boi, enfrentando quedas e atoleiros, até a linha férrea que a levaria para sua nova morada. Sua chegada ao Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 27 de novembro de 1888, coincidiu ironicamente com o ano da Lei Áurea, marco que, longe de redimir o país, mergulhou o sertão na transição perversa da escravidão para o trabalho servil nas fazendas de coronéis.

Parece que o sertão não poderia possuir uma joia de tamanha grandeza, não era possível permiti-nos o luxo de possui uma peça única no mundo, o maior meteorito que já se ouvira falar.
A remoção do Bendegó pareceu desencadear uma série de tragédias. Entre 1877 e 1879, a Grande Seca, a pior do século XIX, matou 500 mil nordestinos, agravada por epidemias de cólera e varíola. O êxodo em massa esvaziou o sertão, enquanto o Império, enfraquecido pela Guerra do Paraguai, 1864 a 1870, falhava em implementar políticas para o seu combate. A população interpretou o caos como castigo pela perda da pedra, e em 1888, revoltosos destruíram o Marco de Dom Pedro II, erguido no local de partida do meteorito, no mesmo dia da Independência do brasil. Um ano depois, em 15 de novembro de 1889, o Império ruiu, substituído, num Golpe de estado, por uma República que herdou o descaso. A Bahia, berço de revoltas como a Sabinada 1837, via-se agora subjugada por oligarquias rurais.

Após a Guerra de Canudos, 1896 a 1897, onde o Exército Republicano massacrou cerca de 25 mil sertanejos, a região, sobre muito esforço do seu povo foi reorganizada. Em 1926, Uauá emancipou-se e herdou o território onde o Bendegó havia caído. Contudo, o sítio histórico permaneceu invisível, sem estradas pavimentadas, sinalização ou memorial, a comunidade de Bendegó da Pedra sobrevive com uma escola precária e índices de IDH abaixo da média nacional. Enquanto o meteorito original brilhava no Rio, citado em estudos da NASA e exposto a 500 mil visitantes anuais, sua terra natal definhava.

As crianças da região agem como se o tempo não houvesse desgrudado dos dias do pequeno Botelho. Desviam o olhar e sussurram entre si quando alguém de fora pergunta pela pedra. Para elas, Bendegó não é passado nem presente, é coisa que ficou suspensa no ar poeirento do sertão, igual às lendas que os mais velhos contavam à luz do lampião. O meteorito virou mistério que o tempo arrastou para longe, feito boiada sumindo no horizonte. Hoje, só existe de verdade nas telas da televisão, numa fatalidade incendiaria, ou nos documentários confusos, tão distante quanto as histórias de lobisomem ou os causos de almas penadas.

2025: A CIÊNCIA E A REVOLUÇÃO DAS ESTRELAS
Em 11 de fevereiro de 2025, uma expedição liderada pelo advogado Francisco Lacerda Brito e integrada pelo Astrofísico Dr. Augusto Cezar Pinheiro Orrico, coordenador do Observatório de Antares, pela astrônoma Dra. Maria Elizabeth Zucolotto chefa do departamento de Meteorítica do Museu Nacional do Rio de Janeiro, pelo cineasta Dr. Rodrigo Gontijo professor do curso de Comunicação e Multimeios da Universidade Estadual de Maringá (UEM), pelo Professor Fernando Munaretto Presidente da Associação de Astrônomos Amadores da Bahia AAAB, pelo astrofotógrafo Eudson Lima, pelo astrofotógrafo Jairo Anara, pela astrônoma Diana Andrade professora do Observatório do Valongo, pelo Dr. Renato Levi Pahim Professor de documentário do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA USP, devolveu simbolicamente o Bendegó ao sertão. Os cientistas trouxeram uma réplica impressa em 3D, cedida pelo Dr. Wilton Carvalho Pinto e telescópios, transformando Uauá em um planetário improvisado. As crianças e nós adultos, pudemos pela primeira vez ver de perto o gigante Júpiter, Vênus e a graciosa lua. O documentário “A Pedra que Caiu do Céu”, de Rodrigo Gontijo, pre-estreou e já reacendeu um agudo debate. Como um objeto tão estudado, presente em 127 publicações acadêmicas em todo o mundo, não gerou nenhum benefício local?

Sob o teto do auditório do CETET, o poeta BGG da Mata Virgem e o músico Cláudio Barris entrelaçaram palavras e melodias em recepção à comitiva e à Pedra Cuitá. Suas vozes, carregadas de uma alegria inquieta, denunciavam o paradoxo da arte no sertão, cantam em festa, mas ecoam como lamento. "Precisamos de asas para que esses versos não morram no meio do caminho", pareciam dizer, enquanto o som da nossa voz se perdia entre as paredes de concreto, sonhando alcançar os rincões esquecidos de Uauá.

Gildemar Sena, artista plástico e poeta, um dos protagonistas do documentário, ergueu o punho cerrado de quem conhece o peso das pedras e das palavras: "Quero ver a Cuitá rodar cada beco de Uauá, entrar nas casas de ‘denoite’, bater no peito do povo como tambor!". Na plateia, Pedro Peixinho, Yuri, Lusa Cardoso e o professor Cid Fiuza deixaram escorrer lágrimas silenciosas, não de tristeza, mas do impacto de enxergar, diante de si, um vagalume da própria história. Os estudantes, com olhos arregalados, tocavam a réplica da pedra como se desconfiassem: "É isso que nos pertence? A réplica que de tão perto dá pra sentir falta, e a original que de tão longe custamos reconhece-la?".

E então veio a pergunta que pairou como provocação: teriam os cem anos de esquecimento roubado não só a memória, mas a fibra daquela gente? A dúvida durou menos que um raio. Num repente, fotos do evento já invadiam celulares e redes sociais, eletrizando a cidade com um choque de identidade. Era como se a Expedição, ao desembarcar em nosso chão, tivesse erguido uma nave diante da comunidade, e ali, entre gretas e poeira, víssemos enfim nosso próprio rosto. "Não vieram só trazer uma pedra", murmurou uma senhora no fundo da sala, "vieram nos devolver o fôlego pra cuidar do que é nosso".

Como ensinava meu avô Milton Rodrigues, "o que é bom não tem pressa, amadurece no tempo, como fruta no pé". E eis que a semente meteórica do Bendegó, aquela que Deus plantou no sertão como um enigma cósmico, tesouro enterrado para desafiar a fé dos homens, fora arrancada antes da hora por mãos ávidas. Durante séculos, dormitou em exílio, mineral adormecido sob o véu da história. Até que o incêndio do Museu Nacional, tragédia lamentável, cicatrizou o solo e despertou seu germe ancestral. Renasceu, então, não como pedra, mas como fênix de bytes, espírito que dança entre hologramas, assombra arquivos digitais e se transmuta em 3D.

Dirão os céticos, "Como pode uma rocha ter alma?" mas o aviso do meu avô ecoa na tela do computador. Bendegó, agora, é semente outra vez, não mais presa à terra seca do Bendegó, mas plantada no ar rarefeito da memória virtual. Será que essa alma de silício, pulsando em algoritmos, consegue guardar o frio da pedra original, aquela que os vaqueiros tocavam com temor, achando ouvir nela o sopro antigo das estrelas? Tantas salas de aulas para levarmos os seus clones, e tantas outras mãos sertanejas que ei de pô-las.

A EXPEDIÇÃO Á BENDEGÓ DA PEDRA
Pois que, no dia 12 de fevereiro do corrente ano, esse autor que vos escreve, mais a comitiva de cientistas da “Expedição Bendegó”, acompanhados dos nossos cientistas locais, os professores Gilberto Gonçalvez da Silva - historiador, administrador, pós graduado e especializado em gestão ambiental e metodologia da pesquisa cientifica, professor Maurilio Loiola da Silva - geógrafo, especializado em gestão e educação ambiental e psicopedagogia clínica e institucional, Professor Ezio dos Santos Dantas da Conceiçao - mestre em física, matemático e especialista em gestão escolar, da Professora Geisabel Lima Silveira - psicóloga, da professora Renata de Souza Varjão - assistente social, da Professora Karina Morais de Amarante - assistente social, do Professor Lucas Medeiros - biólogo e mestre em ecologia e biomonitoramento, do professor Fabiano Lima dos Reis, nos deslocamos pelas brenhas da caatinga até a comunidade de Bendegó da Pedra. Junto com as crianças, jovens e lideranças daquela localidade, simbolicamente reacendemos a história que há muito se apagara para o nosso povo.

A pedra original partiu arrastada sobre trilhos improvisados, puxada por bois que gemiam sob o sol inclemente. Sua jornada foi um ‘calvário’ de tombos e quedas, como se o próprio sertão resistisse à pilhagem de seu segredo celeste. Séculos depois, ao retornar, veio voando no teto de um jipe 4x4, ironia moderna cruzando comunidades que outrora sangravam sob o chicote dos coronéis do gado, e hoje definham à espera de auxílios governamentais. Entre vales esquartejados pela erosão, terras nuas onde cabras famintas disputam raízes, o progresso se revelou um fantasma, frutos de umbu apodrecem atrás de arames farpados, abelhas fogem de flores envenenadas, e veados-catingueiros, agora assombrações raras, espreitam o que restou de seu mundo.

AINDA SOMOS OS MESMOS EXTRATIVISTAS,
MAS TALVEZ NÃO PRECISEMOS SER.
Neste retorno cósmico, o meteorito que é testemunha e réu de nossa história, nos convoca a uma virada. O "Monumento ao Bendegó", proposto pelo Dr. Lacerda, não será apenas pedra sobre pedra, queremos erguê-lo como ‘farol da ciência e memória’, no exato local onde o bólido escondeu-se, ao cair dos céus, e foi encontrado em 1784. Um sítio onde crianças de Bendegó da Pedra guiarão turistas apontando não só para a cratera, mas para constelações que seus avós nomearam com poesia “estrelas dos umbus”. Onde mulheres tecerão redes com fibras de crauá, e jovens trinados transformarão a trilha do meteorito em roteiros de aventura.

Já começamos: em Uauá, Canudos e Monte Santo, três clubes de astronomia brotaram como flor de mandacaru quando a chuva está próxima. Crianças que nunca pisaram em um museu agora poderão ver os cosmos, explorando a Via Láctea que um dia trouxe Bendegó até nós. É só o primeiro passo. Queremos laboratórios e ecologia sob árvores sagradas, onde cientistas de jaleco e vaqueiros de gibão discutirão como recuperar nossos solos. Sonhamos com cooperativas de mel orgânico, rotas de turismo astro-cultural, e aulas de física ao ar livre, com o meteorito 3D projetado sobre a caatinga como um holograma pedagógico.

O SERTÃO NÃO PRECISA DE ESMOLA, PRECISA DE REPARAÇÃO.
Eis o desafio, fazer do Bendegó a semente de uma nova economia, onde conhecimento tradicional e ciências andam juntos. Onde cada visitação gera emprego, cada fruto colhido vira renda, cada lenda contada vira arte. O tempo urge, enquanto escrevo, ele nos consome, os umbus se perdem, e o arame farpado avança. Mas há esperança nas mãos do menino que me guiou até o leito do Bendegó.

Hoje, 14 de fevereiro de 2025, não celebramos a vitória, mas um pacto coletivo. Bendegó, a pedra que viajou do espaço ao sertão, nos ensina, somos poeira estelar teimosa, capazes de florescer mesmo no chão pedregoso e rachado. As veredas são estreitas sim, mas já não estamos sós. Caminhamos com a ciência na mão esquerda, a ‘guiada’ na direita, com os olhos fixos no mesmo horizonte onde, um dia, nossos ‘ancestrais’ viram uma rocha em chamas riscar o céu, profecia de que até as quedas podem ser renascimentos.

A pedra não queria ir, e talvez soubesse que seu exílio seria o prenúncio de nossa dor. Mas seu retorno, ainda que simbólico, acende a esperança de que o sertão não é um lugar do passado, é o ‘malhador’ do futuro.

Uauá Bahia, 14 de fevereiro de 2025.
Robson Rodrigues de Souza
Presidente da ABLACC





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