Conheci Pedro no Caminho do Sertão. Enquanto caminhávamos por dezenas de quilômetros – eu calejando os pés, e ele calejando também as mãos, do aperto firme nas muletas –, ele me ensinava a ter tranquilidade para enfrentar os desafios da estrada e da vida. Esta é sua história:
Aos 32 anos, Pedro Alves estava casado, tinha filhos e trabalhava como vigia noturno numa empresa. Naquela altura, ele já tinha superado a dureza do trabalho infantil no campo – onde ajudava os pais no plantio de milho, mamona e feijão desde os 7 anos de idade, muitas vezes trocando a escola, a 5 km de caminhada, pela enxada sob o sol quente de Irecê (BA). Mas no dia 20 de maio de 2011, durante seu expediente, um disparo atravessou o caminho, e também sua perna esquerda. Calibre 12. “Eram cerca de 22h30 e eu vi a morte na minha frente”.
Pedro estava perdendo muito sangue, e com ele os sentidos, mas conseguiu se arrastar até o telefone para pedir socorro. Ele ainda se lembra do foco de luz da viatura da polícia que chegava, como uma esperança a se agarrar.
A noite foi longa. O hospital local não tinha as condições necessárias para atendê-lo e foi preciso fazer sua transferência para uma unidade maior. Quando chegou ao hospital de Campina Grande, a 450 km de São Bento (PB), onde vivia, já passava das 5h da manhã. Apesar de suas condições, as lembranças de Pedro ainda são nítidas: “pedi ao médico que colocasse minha perna no lugar. Não acreditei quando acordei da cirurgia e vi que ela não estava mais lá”.
Recomeços
Três dias depois, ele estava de volta à sua cidade, mas recomeçar foi difícil. Ele tinha perdido uma perna, o emprego e o rumo. “Minha esposa tinha vergonha de ser vista comigo, andando com uma perna só. Meu casamento acabou e muitas pessoas, ao me verem sozinho, acharam que seria meu fim.”
Pedro chegou a conseguir um novo emprego, de garçom, em uma churrascaria. “Mesmo com uma perna só eu atendia os clientes, mas ainda não estava bem. Foi quando resolvi sair pelo mundo à procura de novos horizontes.” Ele tinha uma irmã morando em Uauá, no norte da Bahia, e foi visitá-la por alguns dias.
Andando pela nova cidade, na região de Canudos e Monte Santo, parou para ouvir um artista local que se apresentava na rua. Foi quando algo inesperado aconteceu: “soltei as muletas e fui dançar no meio da praça – coisa que, quando eu tinha as duas pernas, eu não fazia! As pessoas foram se aproximando para ver… O músico parou de cantar para observar enquanto eu dançava, depois disse que aquilo era um exemplo de vida.”
Ali Pedro percebeu, pela primeira vez, que poderia recomeçar sua vida em Uauá. Alugou uma casa e começou a trabalhar na rádio comunitária Luz do Sertão, como locutor de um programa romântico e também como repórter cidadão pelas ruas da cidade.
É onde vive até hoje, apesar dos desafios que continua a enfrentar. “Amo o que faço, mas não ganho quase nada com isso. Do INSS são R$ 480, mas às vezes cortam o benefício e demora até conseguir restabelecê-lo, e só de aluguel são R$ 250. É difícil.”
Lutando a batalha de todo dia para viver num país como o Brasil e com uma deficiência física, Pedro buscava um sentido para sua trajetória. Ele conta que um dia estava na rádio quando ouviu sobre a Caminhada dos Umbuzeiros, um trajeto de 55 km a serem percorridos em três dias pelo sertão baiano. “Senti que era uma oportunidade para eu me redescobrir, liguei e me inscrevi. Queria ver até onde eu podia ir, qual era meu limite físico. Eu queria desafiar a mim mesmo, saber para que fiquei vivo depois de perder minha perna.”
No dia da caminhada todos se surpreenderam ao conhecer Pedro pessoalmente e descobrir que ele usava muletas e não tinha uma perna. “Alguns caminhantes disseram que eu iria dar trabalho para eles durante o percurso. O maior desafio foi eu acreditar em mim mesmo e passar essa crença para as pessoas que estavam comigo. Tive medo, não vou dizer que não tive. Tive medo de desapontar a mim mesmo.” Mas Pedro conseguiu. E ali algo começou a mudar.
“Conseguir chegar foi um sonho realizado, o melhor presente da minha vida foi ter completado o percurso da Caminhada dos Umbuzeiros. Ali eu percebi que poderia ir muito mais além. Meu maior desafio não era nem a caminhada em si, era eu ter uma vida… normal.”
Atleta
Empolgado com a experiência, Pedro se inscreveu depois no Caminho do Sertão. O percurso – 180 km pelo noroeste mineiro – assustou-o, mas mesmo assim resolveu tentar e conseguiu completar a maior parte do trajeto.
Animado com as conquistas, ele participou de uma mini-maratona de 10 km e depois foi até São Paulo para a São Silvestre de 2017. “Tinha 18 pessoas na categoria deficiente por amputação da perna e eu cheguei em sexto lugar. Foi uma felicidade sem tamanho”.
Em 2018, aos 39 anos, ele voltou ao Caminho do Sertão para completar o trajeto incluindo o que faltava: o Morro do Fogo, com 3,5km de subida e depois descida, e o Vão dos Buracos, uma trilha estreita e íngreme que pede a subida em 4 apoios em alguns trechos.
“Tive medo, mas a vontade de vencer foi maior que o meu medo”.
Foi nessa caminhada que conheci Pedro. Enquanto caminhávamos – eu calejando os pés, e ele calejando também as mãos, do aperto firme nas muletas –, ele me deu conselhos sobre ter tranquilidade para enfrentar os desafios.
Pedro pretendia voltar à São Silvestre em 2018, mas não conseguiu os recursos para a viagem – ele não tem nenhum apoio institucional, apesar de ter a resistência de um atleta. Em 2019, ele vai tentar novamente.
“Tudo isto tem servido para eu ser grato a Deus. Podemos pensar que estamos entregues, mas ainda conseguimos enxergar um novo horizonte. Esta é minha história”.
***
Mais sobre o Caminho do Sertão
E meu relato pessoal sobre a caminhada: Pelos caminhos do Grande Sertão: Veredas
[Por Marina Almeida]
FONTE: https://dariaumlivro.com.br/2019/03/18/reaprendendo-a-caminhar-a-historia-de-pedro-alves/?fbclid=IwAR02USRIjwFEwOc1MeiBfhRBrMy-F6DAAPB16s0dlGhPLccaAqnLBU2lL-M
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